sexta-feira, 6 de maio de 2016

A importância do faz de conta na creche

Com histórias, roupas e objetos triviais, a turma solta a imaginação

Paula Peres (texto). Edição Fernanda Salla

Quem nunca, quando pequeno, imitou o gesto de passar um batom - como viu a mãe fazer em frente ao espelho -, colocou os sapatos do avô e tentou andar com eles pela casa, pegou a bolsa para passear ou entrou em uma caixa e transformou aquele pedaço de papelão no carro do pai? Aos 2 e 3 anos, os pequenos já dão asas à imaginação e esses jogos simbólicos devem ser valorizados na escola e ter espaço no dia a dia da creche, como faz a educadora Cybele Pedreira Silveira do CEI Paulo Sarasate, em Fortaleza.

De acordo com o cientista suíço Jean Piaget (1896-1980), nessa faixa etária, os bebês passam por uma transição do estádio sensório-motor - em que exploram o mundo por meio dos sentidos - para o pré-operatório - quando começam a distinguir o significado de palavras, imagens e símbolos. "Antes, é como se as coisas só existissem quando as crianças estão em contato direto com elas. Depois, elas aprendem a dar nomes a ações, objetos, sentimentos e sensações. Mesmo ausente, tudo isso ganha lugar na brincadeira, com o uso da imaginação, da imitação, da representação e do jogo", diz Lino de Macedo, professor aposentado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e colunista de NOVA ESCOLA.

Incentivar esses momentos, por meio de propostas para que a turma mergulhe no faz de conta, auxilia no desenvolvimento do pensamento simbólico. "Além disso, é importante para que a criança se torne alguém criativo no futuro", afirma Alessandra Ancona de Faria, formadora do Instituto Avisa Lá, em São Paulo.

Cybele insere o faz de conta no cotidiano da creche de formas diferentes: na contação ou leitura de histórias relacionadas ao universo da fantasia feitas à turma e no brincar com diversos objetos e cenários, como casinhas, fogões de brinquedo, caixas de madeira ou papelão, acessórios variados e até roupas do mundo adulto, embarcando na representação de personagens. 

As contações ou leituras são diárias e duram cerca de 15 minutos. "Os pequenos costumam ficar concentrados por pouco tempo", diz a professora. Segundo Lino, nessa idade, o sujeito já tem capacidade de agir frente à trama contada, embarcando na viagem do educador. Depois de ouvirem, as crianças são incentivadas a conversar sobre o enredo ou recontá-lo. "Isso estimula a elaboração da narrativa", afirma Cybele.

A docente ressalta que cada uma tem uma maneira própria de contar a história novamente. Muitas mantêm o tema, mas inserem elementos que não havia antes, por exemplo. "Quando li Chapeuzinho Vermelho, uma delas focou em falar sobre as comidas que a personagem levou na cesta para a casa da vovó, algo que não tinha no original. Aproveitei e perguntei aos outros o que mais poderia haver na cesta, e todos deram seus pitacos."



Criatividade em alta

Cybele também planeja momentos para que os pequenos interajam com espaços e objetos colocados por ela em sala. "A intervenção do professor está na organização do local, em criar cenários interessantes para as crianças e disponibilizar materiais que elas possam usar, a exemplo de um ambiente configurado, como uma casinha. Mas o principal é permitir que a brincadeira aconteça sem ditar aos pequenos o que eles têm de viver", ressalta Ana Paula Yazbek, coordenadora do Espaço da Vila, em São Paulo.

É importante, porém, não confundir brincadeira livre com falta de intencionalidade pedagógica. A observação e a atuação docentes são fundamentais. "Não é apenas deixar as crianças soltas. Você pode, levando em conta o que observa, fazer sugestões ou participar da brincadeira, interagindo com as crianças", afirma Alessandra. A turma de Fortaleza está acostumada a convidar as professoras a entrar no faz de conta. "Se alguém está fazendo comidinha, eu pergunto: ‘O que você está cozinhando? Posso experimentar?’. Converso, finjo que estou comendo o que me oferecem e faço comentários sobre o sabor", relata Cybele.

Tudo deve ser feito com muito cuidado e respeito, para que a vontade dos pequenos não seja atropelada pelas orientações do educador, na tentativa de coordenar o enredo. "Quem assiste de fora pode achar que o faz de conta não tem sentido e querer mostrar como deve ser feito. Porém, não há problema que ele seja bagunçado. Para a criança, o que importa é fantasiar", afirma Lino.

Da mesma maneira, estipular quais brinquedos devem ser usados por meninos e por meninas não é recomendável. "Não é papel da escola, como instituição educativa, fazer essa delimitação", alerta Ana Paula. Na turma de Cybele, os brinquedos são compartilhados por todos e é frequente ver meninos ninando bonecas e dando papinha a elas. Outro cuidado necessário é não pensar que, em momentos assim, as crianças reproduzam sempre algo real, que necessariamente tenha ocorrido com elas. Apesar de o repertório de ações ser constituído pelo que elas veem ou vivem, a representação pode ser parte da imaginação e não se deve ter conclusões precipitadas.

Vale ressaltar também que conflitos podem aparecer na interação entre duas ou mais crianças, como a disputa por um dos brinquedos ou pelo papel a ser representado ("Eu sou a mãe!" "Não, eu é que sou."). "Nesses casos, o professor deve intervir não no sentido de dar a resposta sobre quem está certo e errado, e sim questionando os envolvidos sobre o que pode ser feito para resolver a questão. Quem vai solucionar o conflito são eles próprios", enfatiza Ana Paula.

Ao brincar e fazer escolhas com autonomia no dia a dia do faz de conta e da fantasia, as crianças começam a significar e ressignificar as coisas. Os objetivos de aprendizagem e os caminhos para isso são criteriosamente planejados pelo educador, mas quem dita a trama são os pequenos. Aí, o limite é a imaginação: vale virar uma mãe cuidadosa, um super-herói a salvar o mundo e até serem eles os professores a ensinar; 


Publicado em NOVA ESCOLA Edição 284, Agosto 2015. Título original: Vamos fazer de conta

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